quarta-feira, 18 de junho de 2008

Uma crônica em estado crônico

Ponto de ônibus lotado, quase sete da noite, procuro um lugar pra me encostar, esperar a lata de sardinha menos cheia é a meta. Escuto ao lado o lamento angustiado de um pai ao celular, provavelmente falava com a mãe da criança que estava no seu colo: -Já tô chegando!!Já tô chegando, tá impossível entrar no ônibus, ainda mais com a Julia, você quer que eu mate a coitada espremida dentro do busão?! Não vou sequestrar a menina não, só não tô conseguindo chegar - Deviam ser pais separados e nesse relato talvez a única coisa separada.
Praticamente rebaixado chega o COLETIVO (com o tanto de gente dentro diariamente é até retundante ter esse nome, lotação então é uma hipérbole) uma mulher começa a gritar lá dentro: - Aiiiiiiii, Aiiiiiiiiiii, me solta, deixa eu passar, cusão!!! - Toma um soco na nuca enquanto desce- Aiiiiiiiiii, filho da puta!!!! - Uma voz masculina acompanhada por outras vozes que não consegui distinguir na confusão diz: - Vai vadia, vai dá pra quem tem tempo!!! resolve ir pra porta só na hora de decê depois acha que pode empurrar todo mundo, piranha!! - O cara que disse isso não sabia que ela vinha tentando chegar à porta a uns três pontos atrás - Com os olhos rasos d`agua ela saiu pisando duro e esbravejando. O motorista desta vez nem abriu a porta pra subida de novos passageiros só expurgou um fragmento do caos, mas logo atrás vinha um menos esperto que além de parar bruscamente e ouvir do coro que o cercava: - Tá carregando boi porra! - Ainda abriu a porta pra uma multidão que empacou a viajem por uns 15 minutos, como as pessoas entraram lá dentro eu não sei, se pá mágica sei lá. As vezes penso que aquela lei da física de que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço não existe dentro do ônibus.
O desespero começa a bater quando me imagino dentro daquele inferno, voltar pro trabalho? Não, lá é outro inferno apenas um pouco mais espaçoso. Penso em ficar no ponto até tudo acalmar, mas me lembro que isso pode demorar demais, à ponto de valer a pena dormir aqui no ponto só pra passar as horinhas que faltaram, amanhã é dia de branco (todo dia é, de negro é que não chega) e mais um pau de arara vomitando gente me trará de volta pra esse mesmo lugar.
Meu ônibus aponta na curva, fico apreencivo, o povo começa a se deslocar tentando adivinhar onde o ônibus parará, me lanço na massa, o ônibus para, próximo de mim, que sorte, grande bosta sei que a mesma sorte não me acompanhará lá dentro, nesse momento é que penso em me agarrar a deus, àlias deve ser por isso que tem tanto religioso em quebrada, pois muvucado na porta conseguir um lugar pra entrar é coisa divina, o foda é que esse mesmo deus que pode me ajudar a anestesiar meus sentidos dentro de um triturador humano, não me deu asas pra ir voando pra casa, ao invés disso deu asas a passáros que nem trabalham em linhas de produção 12 horas por dia. Esqueço deus e vou tentando penetrar no ônibus, como um filho que tenta voltar para o útero materno 10 anos depois de seu nascimento. Tanto tempo nesta sina já aprendi uns massetes, vou empurrando levemente a passagem dando olhadas pra trás com cara de sonso e pedindo licença, desse jeito mesmo quando dói a pessoa entende, o importante é não perder a constância até a catraca, onde o gado tenta passar antes que o bilhete único trave a passagem, é uma coisa meio Magiver, você tem um minuto para passar seu bilhete independente da multidão que esteja impedindo a virada da roleta. Eu sou um passageiro que não desce muito longe do ponto de partida e isso dificulta ainda mais minha missão, pois posso passar do ponto de descida num piscar de olhos, então não brinco em serviço, podia caminhar até onde preciso, mas é uma distância meio ingrata tipo uns quatro Km e eu não sou nenhum atleta, não me alimento bem, não medito, não tempo tempo pra mim, só pro trabalho, enfim chego na catraca. Olho pro lado procurando da onde vem certos grunidos que ouso, vejo uma mãe tentando acalmar seu filho, tinha algum tipo de deficiência mental, o coitado estava extremamente inquieto, babava muito e emitia sons nada agradaveis, um velho ao lado do assento reclama da politica atual, outro na passagem tenta acordar o jovem que fingi dormir no assento preferencial, passo a catraca, me sinto mais aliviado, mas os rostos dos zumbis que me acompanham nesta viajem não me animam em nada. Alguém dá sinal, o motorista não percebe, então começa a gritaria e os socos na porta: Dei sinal caralho!! Tá cego?! - Me pergunto: Cego ele não deve estar, mas a beira da loucura talvez...
Motorista é uma das profissões mais ingratas que tem, não se pode errar quando trabalha-se com vidas humanas, ouve xingamentos diários e recebe pouco, o pior é que poucas vezes pércebe o potencial que teria para uma revolução, poderia parar a cidade se houvesse articulação e força, mas utopias à parte sigo, profissões ruins todos dentro desta barca devem ter, mesmo os mais realizados não podem ser felizes neste lugar.
Desço, fecham-se as portas do compactador de lixo, traço meu caminho pra casa pensando na vida como ela poderia ser se a doença que acomete o sistema de coisas não fosse crônica, penso:
-Minha vida vale R$2,30 !!!!

Um comentário:

Lucas Diniz disse...

Que imaginação!!! De onde tirou esta Ficção?! Esse tipo de coisa, no Brasil não existe!!

Só de ler já dá agonia, imagina enfrentar isso todo dia...

Legal a "leitura do caos" feita pelo narrador...