quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Sujeito oculto

No começo eu não queria acreditar, olhei pro meu corpo e fingi não ter entendido, não era possível que tivessem feito aquilo só por causa de uma olhada. No fundo, eu sabia desde aquele instante, mas foi difícil, imagine que depois do acontecido eu fui tentar explicar pro povo que eu não tinha feito por mal, foi só uma olhadinha sem compromisso, ela era linda e eu não sabia que estava acompanhada, ninguém me deu atenção, eu parecia não existir pra ninguém ali. Poxa, no meio daquele calor, cuíca, pandeiro, agogô, umas breja na cabeça... o suingue dela me ipinotizou e acabou dando no que deu, enfim demorei, mas compreendi, era samba, era favela era a mulher do Cirílo e ele tinha que cobrar a treta, ia ficar tirado na quebrada se por um acaso alguém visse que eu tinha olhado pra sua mulher, o que iam dizer na biqueira no dia seguinte? Porém foi um pouco exagerado né? Podia ter me dado umas porrada e já era, teria sido suave, uma surra em troca de um sorriso "e que sorriso", ainda bem que ele só viu eu olhando pra ela e não ela também olhando pra mim, pois se assim fosse tinha sobrado pra ela também, menos mal teria sido uma surra em troca de um sorriso, nada de novo só o que a vida já faz com qualquer um dessa quebrada diariamente, uma surra em troca de um sorriso. Mas não foi assim, o desgraçado sacou o trabuco e foi pipoco o medidor da treta, foi feita a merda, o samba parou, a rapa saiu correndo, instrumentos caindo no chão...que pecado! Comigo tudo bem, qualquer coisa eu topo, mas aquele dia o pandeiro foi maltratado, tamborim descompassou, o surdo ficou surdo com o estampido da bala, a dança, a reunião de gente em melodia comum foi interrompida, o samba não pode ser tratado desta maneira, jamás!!! Essa foi minha maior dor naquele momento, essa foi minha minha maior perda...
Depois daquele dia o samba demorou a voltá, a polícia ficava urubuzando a área e a galera ficava com medo, eu que já era marrento, depois daquele dia fiquei mais ainda, peitada os cusão e mandava corrê, mas num surtia muito efeito, eu fiquei meio invisível depois daquela noite, todo mundo passava desapercebidamente por mim e pouco me davam aouvido, a mulecadinha que jogava bola na ruinha de trás, ali sabe, onde a frieira encontra a guia, onde a gritaria faz todos parecerem mais vivos, nem ali eu era notado. Mas de tanto infernizar indo na casa dos sambistas toda noite, eles acabaram se enchendo. Foram devagarindo chegando no terrero, voltou meio tímido o batuque, mas voltou e graças a mim. Tá certo que as vezes eu tinha que pegá na mão do Zeca quando o tamborim parecia tá meio devagar e dava energia pro negócio, o coitado até suava frio, as vezes o surdo ficava fraco e eu grudava na baqueta e ajudava a porrada do Zezinho ser mais ritimada, assim seguia toda noite de sexta e sábado, eu como já era de praxe nunca era lembrado, mas vira e mexe ouvia alguém dizer pra algum dos músico: - Hoje você tava inspirado hein?! E o pior era as resposta dos ingrato dos músico dizendo: - Sei lá, senti uma força vindo num sei de onde e me tomando o corpo, tá forte o samba hoje! Era assim, mas tudo bem, ali a única majestade tinha de ser a música.
Todo mundo ia embora lá pras hora que amanhecia, lá pras hora que o pé da judite, a passista mais nova começa a doer, eu podia ficar ali por séculos, mesmo vendo todo mundo ir embora sem me comprimentar, mesmo vendo um falando mal do outro pelas berada, era ali minha morada meu recanto sagrado. E se quer saber, depois de tudo sozinho no terrero é que eu sentia a melhor parte do momento, aquele bafo quente misturado com a poeira do chão, aquela atmosfera de paz deixava guardado no ar os melhores sonhos das pessoas que por ali tinham passado, parece que só eu via aquilo. Até que um dia enquanto o Tijuca chamava a saidera no samba, eu vi a dona Sofia no meio da multidão, tava olhando pra mim, logo ela mãe do Cirílo ele que tinha tornado minha vida naquele descaso, ela benzedera das arruda do barranco, logo ela!!! Pensei, será que tô fazendo algo de errado? Fui até ela e me ajoelhei, pedi bença, ela disse: -Deus te abençoe meu filho. Fiquei muito emocionado, foi a primeira pessoa que falou comigo depois daquele dia fatídico no samba, eu já tinha até me acostumado com o meu pecado, com a minha exclusão, parei o samba aquele dia e o samba parou minha vida, porém ali do lado daquela sábia mulher me senti de novo mais um da família, me senti perdoado sem que ela dissesse uma palavra a mais, o olhar dela erradiava luz e me dizia algo que eu mesmo sem entender sabia que era bom, aquele dia eu fui embora do samba mais cedo.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Ruínas de Gente

Do pó viemos,
ao pó voltaremos
Se for fogo queimaremos,
se for água beberemos...
No fim uma coisa só
poeira de vida, reconsumida, renascida
Veremos, é o fim de todos
sem amos, sem remos
no silencioso mar
de infinito sem contorno
o eterno devir, o eterno retorno