quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Manga-rosa-espada

Ela tem olhos de mangá
e vive a mangá d'eu que tenho uma luzinha na mirada
Quando agente ama o ar se perfuma com um cheiro de manga-rosa-espada
e banho de mangueira num esfria o calorão
Vivo mangueando uns trocado pela estrada
e arregaço as manga pra fazer nosso feijão
Por isso, num se magoa se eu me ademora um pouco
qu'eu fico louco aqui também na solidão
Daqui a pouco vou chegando e te levo uma mangaba
ai agente faz um suco e se acaba no seu macarrão!

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Por debaixo do pano

Mesmo sob o sol escaldante, no cimento da calçada ela permanecia coberta, e era como se a cidade toda encobrisse algo, uma chaga incicatrizável. Histórias e vidas soterradas pela miséria.
Mara era seu nome, e na essência já guardava a amargura. Nem um bom dia, nem um sorriso, nem um oi. Nem mesmo um esbravejar, um balde d`agua, um sai pra lá, ela só era vista pelos seus semelhantes de sarjeta, pelos ratos e gatunos da noite. O medo do furto, do soco, do estupro, só fazia querer cada vez mais se esconder. Os porteiros dos condomínios só sentiam sua presença quando percebiam que alguma sacola fora rasgada nas grandes lixeiras trancadas da rua. Provavelmente em alguma das incursões de Mara em busca de alimento. Resmungavam dizendo: "Deve ser aquela criatura que vive encoberta na calçada ali um pouco a frente, foi ela que rasgou pra comer lixo, só pode ser!"
Chamavam de criatura, pois o olhar descuidado mal sabia diferenciar o sexo da pessoa, era para toda a elite do lugar um vulto, uma presença incomoda e sombria que sujava o bairro. Mesmo os trabalhadores do lugar, ou os menos abastados que por ali passavam fingiam não vê-la. Alguns dias ela forçosamente gritava aos quatro cantos soltando seus demônios chigando a todos e rosnando até mesmo para as crianças e ainda assim permanecia invisível, tudo que se ouvia era: "Vixi atravessa a calçada que é mais uma alma penada tenho um surto!"
Condenada, era como ela se sentia, condenada a solidão, às memórias da agressão familiar, condenada a fome, às drogas, a invisibilidade!
Cansada de tudo certo dia se cobriu para nunca mais descobrir. Ali num banzo ancestral ela se apagou. Não chegou a desviver, pois só desvive quem já teve vida, nem morreu, pois a morte em vida já lhe era comum. Apenas sucumbiu. Sua presença ingrata pela uma última vez foi sentida depois de um mês quando todos do bairro já não sabiam onde procurar a origem do cheiro asqueroso que se espalhava com o vento. Foi um catador que mesmo acostumado com o cheiro das mais fétidas sacolas percebeu uma presença diferente imóvel e putrefata no canto da calçada, e chamou a polícia. As senhoras futriqueiras das sacadas olhavam atentas o trabalho dos PMs, os porteiros sussurravam baixinho: "Agora o lixo vai parar de aparecer furado na lixeira!"
As moças de classe média passeando com os cachorros não sentiram muita diferença a não ser pelo fato de ter de passar pelo meio da rua arriscando sua vida e a segurança de seus animaizinhos de estimação, já que a calçada estava tomada pelo pessoal da perícia e do rabecão. Mara foi transferida do cobertor para o saco preto, permaneceu encoberta, invisibilizada pela cor, pelo sexo, pela condição, pela sociedade que sempre esconde o que rejeita debaixo do pano.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Unguento

Aguda a canção dos Agudás,
reverberando canções de retorno ao lar sobe o mar de lágrimas
Mas como se volta p'ruma casa desaprumada pelo tempo?
Como reinventar a liberdade? Como se reencontrar num presente sem pretensão.

Não se ensina o desalento, simplesmente preparam-se os unguentos
e o novo corpo reestabelece o novo mundo
e no fundo todos já sabiam voltar

terça-feira, 8 de julho de 2014

Nós

Notívago, eu, rompo a escuridão guiado por teu sorriso
que alumeia minhas vagas e alumbra meu vazio.
Tu vargas. velhas veredas percorres em mim
e abres novas picadas de puro verde e perfumas o jasmim.
Vagueio tua imensidão e me encaixo no espaço vago entre o racional e coração
e ali descubro o teu vermelho e devagar faço morada
e agora quando olhas no espelho também podes me ver
tua sombra me entrega e minha luz te projeta
somos por vezes a mesma voz, cada qual com sua especificidade,
mas ambos com a mesma sina com a mesma necessidade
de se juntar em uníssono imagem e poesia, alma e músculo
compondo aurora e crepúsculo na mesma hora, no mesmo lugar.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Aguado

Quis beber o mar,
por um instante imaginei
que debaixo da manta de espuma poderia te encontrar
numa prosa boa trançando os cabelos de Iemanjá

Quis beber o rio,
mas desisti do desvario
e quis ser canoa
em suas águas a deslizar
meu norte tua proa

Quis beber a chuva,
num pequeno momento no tempo
fui a gota paridera
se embrenhando no chão rachado da saudade
e fiz brotar em verde sua imagem,
seu sorriso...

Sentir a seca da tua falta me rasgando a terra
me fez querer beber toda água do mundo,
mas lá fundo, bem lá no fundo eu já sabia
que nenhum um açude me traria
a água doce dos teus beijos

sábado, 29 de março de 2014

Claudia


Eu fui arrastado,
e nesse arrasto mais de 514 anos vieram comigo
Camburão, jazigo, descaso, destino...
Arrastaram ela ainda viva,
ainda ela, ainda negra, ainda pobre
Toda uma sociedade arrastada por séculos de iniquidade
Arrastaram Claudia e me arrastaram também
e foram os mesmos homens que arrastaram
meus tataravós para as senzalas
Claudia, leite nenhum levou para casa àquele dia
deixou 4 meninos de barriga vazia

perdidos

como a bala que acertou a mãe.




Em honra a Claudia Silva Ferreira

quarta-feira, 19 de março de 2014

Cancelas, veredas e paixões

À mim cabe o tempo assistir
hoje depois da revoada de paixões
minha razão sabe sentir

hoje me cabe plantar sementes de amor
e espreitar o flor(e)cimento
Tranquilamente intranquilo
como Zambeze, o rio, infestado de crocodilos

Hoje me cabe cheirar o vento e ver o valor
de quem se encoraja a saltar minhas cancelas
viajar em minhas veredas
ver minha profundidade e meu vazio
bem de perto

Hoje quero viver o arrebatamento
o desvario do sentimento que se espraia em mim
eu não desisti de amar,

hoje quero, mais do que nunca
o prazer de cada vão momento
destilar poesia, ainda que em tempos de guerra

à mim cabe esperar que alguém me invada
se amalgame e ame, tatue-se nas brenhas do meu coração
quero sombra pra descansar sem assombro

à mim cabe a dor dos corações partidos,
dos quereres que findaram sem começar
meu carmas e minhas quimeras
vêem de outros tempos, outras eras

Porém, esse mesmo tempo também me rendeu a sanha
de sempre reassanhar a cabeleira e seguir
fermentando o que me cabe, o que me coube com o passar dos anos
meu vinho não ei de beber sozinho

Nova vida, novos planos, velhos sonhos
eu não desisti de mudar o mundo
eu ainda acredito na arte
E hoje sei que isso não é nenhuma ingenuidade

Amanhã me cabe o futuro
essa encosta de morro
onde ninguém nunca permanece muito tempo
sem virar passado

almejo o que almejam as flores
espalhar beleza em qualquer terreno
sob o lixo, sob o feno, ao natural ou com veneno

Almejo vida que me despetale, que me traga feridas,
mas que nunca me tire o poder e o pudor,
de ainda sem voar,
roubar o beijo do beija-flor

(Daniel Fagundes - Recife - 19/03/2014)