quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Por debaixo do pano

Mesmo sob o sol escaldante, no cimento da calçada ela permanecia coberta, e era como se a cidade toda encobrisse algo, uma chaga incicatrizável. Histórias e vidas soterradas pela miséria.
Mara era seu nome, e na essência já guardava a amargura. Nem um bom dia, nem um sorriso, nem um oi. Nem mesmo um esbravejar, um balde d`agua, um sai pra lá, ela só era vista pelos seus semelhantes de sarjeta, pelos ratos e gatunos da noite. O medo do furto, do soco, do estupro, só fazia querer cada vez mais se esconder. Os porteiros dos condomínios só sentiam sua presença quando percebiam que alguma sacola fora rasgada nas grandes lixeiras trancadas da rua. Provavelmente em alguma das incursões de Mara em busca de alimento. Resmungavam dizendo: "Deve ser aquela criatura que vive encoberta na calçada ali um pouco a frente, foi ela que rasgou pra comer lixo, só pode ser!"
Chamavam de criatura, pois o olhar descuidado mal sabia diferenciar o sexo da pessoa, era para toda a elite do lugar um vulto, uma presença incomoda e sombria que sujava o bairro. Mesmo os trabalhadores do lugar, ou os menos abastados que por ali passavam fingiam não vê-la. Alguns dias ela forçosamente gritava aos quatro cantos soltando seus demônios chigando a todos e rosnando até mesmo para as crianças e ainda assim permanecia invisível, tudo que se ouvia era: "Vixi atravessa a calçada que é mais uma alma penada tenho um surto!"
Condenada, era como ela se sentia, condenada a solidão, às memórias da agressão familiar, condenada a fome, às drogas, a invisibilidade!
Cansada de tudo certo dia se cobriu para nunca mais descobrir. Ali num banzo ancestral ela se apagou. Não chegou a desviver, pois só desvive quem já teve vida, nem morreu, pois a morte em vida já lhe era comum. Apenas sucumbiu. Sua presença ingrata pela uma última vez foi sentida depois de um mês quando todos do bairro já não sabiam onde procurar a origem do cheiro asqueroso que se espalhava com o vento. Foi um catador que mesmo acostumado com o cheiro das mais fétidas sacolas percebeu uma presença diferente imóvel e putrefata no canto da calçada, e chamou a polícia. As senhoras futriqueiras das sacadas olhavam atentas o trabalho dos PMs, os porteiros sussurravam baixinho: "Agora o lixo vai parar de aparecer furado na lixeira!"
As moças de classe média passeando com os cachorros não sentiram muita diferença a não ser pelo fato de ter de passar pelo meio da rua arriscando sua vida e a segurança de seus animaizinhos de estimação, já que a calçada estava tomada pelo pessoal da perícia e do rabecão. Mara foi transferida do cobertor para o saco preto, permaneceu encoberta, invisibilizada pela cor, pelo sexo, pela condição, pela sociedade que sempre esconde o que rejeita debaixo do pano.

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